Uma entrevista com a chef, cujo amor por compartilhar saberes e uma existência mais autêntica continua a ser o que a movimenta – Gustavo Ranieri – 19/03/2021
As pequenas e várias cicatrizes de queimaduras em nada incomodam a chef Heloísa Bacellar. Pelo contrário, diariamente as marcas provocadas por assadeiras quentes, alimentos e líquidos em alta temperatura, e descuidos no fogão também contam a ela a sua história. Afinal de contas, ainda que caminhe sempre para frente, Helô, como costuma ser chamada, enaltece com alegria tudo o que é memória. “Essas cicatrizes são como as da vida da gente, com coisas boas e ruins, alegres e tristes. Tudo isso faz a gente viver.”
Como é óbvio, muita coisa aconteceu e se transformou na vida da chef, mas a essência é a mesma da menina que aos 6 anos já pedia para a avó ensinar os primeiros passos na cozinha. Desse momento em diante, mais de cinco décadas se passaram, Helô cursou Direito e atuou como advogada até 2005, mas uma década antes, em 1995, morou por um ano em Paris onde conquistou o Le Grand Diplôme de Cuisine e de Pâtisserie da ultra prestigiada escola Le Cordon Bleu.
Em 1999, foi sócia-fundadora do Atelier Gourmand, no qual por seis anos deu aula para cozinheiros e aspirantes à profissão. E em 2009 abriu o Lá da Venda, icônico espaço na Vila Madalena, em São Paulo, que era um misto de restaurante, café e empório caipira. Era – assim mesmo, com o verbo no passado – porque há poucos dias Helô sucumbiu aos impactos da pandemia e fechou o estabelecimento – ano passado ela já havia encerrado o funcionamento também do quiosque no Shopping JK Iguatemi e da loja de fábrica no bairro da Barra Funda.
O momento é triste, mas não o suficiente para diminuir sua força. Ao lado de Ana Bacellar, filha e fotógrafa (as imagens dessa entrevista são todas de sua autoria), continua tocando com motivação seu site Na Cozinha da Helô e o canal homônimo no YouTube. E, claro, fazendo aquilo que todos os dias também a movimenta: escrever. Afinal, já são cinco livros publicados no Brasil e dois editados na França. Entre eles se destacam Brasil à mesa, Cozinhando para amigos e Chocolate todo dia. “É um novo ciclo. Cozinhar é preciso, escrever é preciso. É assim que vivo e transmito o meu carinho e o que sei.” Confira a seguir uma entrevista com a chef Heloísa Bacellar. E aproveite!
De que maneira a cozinha te ensinou a viver?
Especialmente com o prazer por fazer, por acompanhar o processo. E aí está uma coisa importante: gosto de processos e de projetos. Por exemplo, sempre fui muito dona do meu nariz e sempre fui moderna por um lado. Mas justamente por ser autêntica, nunca tive vergonha de assumir que também gosto de muitas coisas caseiras, como bordar, costurar, tingir pano com tintura natural, gosto de pegar uma sacola velha e bordar um monte de florzinhas, pegar uma calça que rasgou e torná-la outra coisa. Sempre fui muito de transformar e acho que cozinhar é isso: você tem aquele projeto, que no caso é uma receita, vai escolher os ingredientes, vai misturar e aquilo irá resultar em algo. E isso muitas vezes é por demais desafiador. Não é todo mundo que encara projetos na vida, às vezes as pessoas ficam dez anos pensando e não realizam. Mas acho uma delícia você imaginar uma coisa e fazer todo aquele percurso até chegar ao que deseja. Não que não vá errar, mas você fez. Cozinhar para mim tem esse fascínio.
Mesmo que vejamos a defesa do individualismo em nossa sociedade, sinto que o cozinhar, ainda mais em um restaurante, só se faz a partir do convívio e da confiança no outro. Pode falar um pouco sobre isso?
Talvez a cozinha seja um dos poucos lugares em que a abertura para o coletivo é muito forte. Assim como estar à mesa é uma experiência humana muito forte e intensa, porque a comida não carrega tantas imposições. E mesmo em situações precárias, as pessoas param para comer e naquele momento elas estão juntas.
Isso também se relaciona à transmissão de saberes, a uma cozinha de herança, não?
Quando você fala de herança, e achei bonita a palavra, não estou só falando de quem teve uma casa de vó e que comia muito bem as comidas que ela fazia. Não falo só da receita e do que se aprendeu. Mas de tudo, herança que remete à raiz daquela alimento, de saber como e de onde ele veio. Realmente isso é uma coisa muito arraigada em mim. Vivo assim, é meu jeito de tentar transmitir esse amor pela cozinha, pois acredito em movimentos e tento fazer com que as pessoas descubram coisas legais no cozinhar e que, a partir dele, possam viver uma vida mais verdadeira. Entendo isso como uma missão minha, um valor muito intenso.
Então essa é a sua herança?
Sim, ter feito muita gente descobrir que cozinhar, comer e estar junto é muito bom, prazeroso. Não precisa ser difícil para ser gostoso. Como disse, ensinar para mim é meio que missão. E os meus livros são missão. Aliás, além de comer, amo escrever, é uma das coisas que faço diariamente. Não fico um dia sem escrever e sem fazer os meus testes culinários. É a minha vontade incansável de testar até chegar ao resultado que almejei.
E tem alguma comida específica pela qual você acessa suas raízes mais fortemente?
Bolo, costumo dizer que uma casa com bolo é sempre melhor. Mas o pão também faz parte dessa raiz. Especialmente porque ninguém come um bolo ou um pão inteiros. Sempre se cortam fatias para compartilhar. Talvez por isso sempre gostei de fazer pratos grandes para se dividir, porções familiares.
A Heloisa Bacellar que se observa hoje é, de alguma forma, a mesma de quando era criança?
É aquela menina que com 6 anos minha avó acreditou que eu era responsável e me ensinou a cortar um abacaxi, enquanto as pessoas achavam um absurdo alguém dessa idade usar uma faca. Continuo sendo aquela pessoa curiosa, que adora saber algo novo, que adora entender, estudar, ler todos os tipos de assuntos. É uma Heloísa Bacellar que conseguiu manter o amor, me considero uma pessoa apaixonada, é o que me move.
Se não existe verdade esse amor não é possível.
A pessoa até pode achar que gosta de uma coisa ou de outra, mas esse é um amor puro, genuíno, nada fugaz.
E há algo que te angustia?
É difícil você sonhar e gostar tanto das coisas, se empenhar em fazer ações que parecem tão legais, mas acabar não sendo muitas vezes bem compreendida ou demorar para as pessoas entenderem o seu propósito. Falando de trabalho, quando você está um pouco à frente do tempo, é tão complicado inovar e conseguir viver das suas inovações. Isso é uma coisa que me frustra.
Obviamente que o fechamento do Lá da Venda, que encerrou de vez as atividades no último dia 19, deve ter causado uma frustração enorme. Quem é a Heloísa Bacellar que continua a partir de agora? Como vencer com sua alegria o impacto dessa tristeza?
A tristeza é imensa, o coração está destroçado, mas é lindo ver como a Venda fez história, deixou legado. Centenas de mensagens recebidas falam por si e é emocionante ler tudo isso, como a Venda fazia parte da vida de tanta gente, que sentia que eu estava ali. Mas a Helô vai além, a garra não lhe falta, o amor pela cozinha e pela mesa com pessoas queridas ao redor fala mais alto.
Helô, o que é a vida?
Adoro música, sou beatlemaníaca, até fui para a Inglaterra com minha filha Ana em um festival de beatlemaníacos. Adoro tanto o John como o Paul, cada um ao seu jeito. E quando John [na música Beautiful Boy] diz que life is what happens to you while you’re busy making other plans (a vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos), sinto que é isso, a vida é o que está acontecendo agora. Então você tem que fazer esse agora ser um pouco melhor.
4 Comentários
Adoro as comidas dela as tortas os bolos são fantásticos assisto sempre no sabor e arte parabéns
Oi Irene, aqui a Helô!
Quanto carinho, obrigada!! Conte sempre comigo, bj, Helô
Adoro a Helo e vejo seus vídeos sempre que posso ela é muito didática além de super simples e simpática comunicar é isso não basta só saber tem que saber passar o seu conhecimento, acho que ela é uma professora do assunto.
Marcos, boa noite! Sua mensagem alegrou o meu dia, faço tudo com tanto carinho e tanta dedicação que reconhecimentos como o seu são incentivos imensos. Abraços e muito obrigada, Helô